No último ano assistimos a uma rápida evolução em nível global da agenda de inteligência artificial. Como indicado pelo monitor de Gartner sobre as tendências em tecnologia, esta questão está no topo da atenção da indústria, dos governos e da sociedade. Mais de 30 países possuem atualmente políticas vinculadas ao desenvolvimento industrial da inteligência artificial, com investimentos consideráveis. O assunto é discutido em revistas especializadas pelas Nações Unidas, por documentários na Netflix, pelas instituições de desenvolvimento, doadores, empresas de tecnologia, artistas, etc. Em resumo, hoje é quase impossível fugir de algum tipo de discurso em que se atribua que a inteligência artificial vai mudar o mundo. Vários atores importantes consideram esse processo em termos históricos, como a quarta revolução industrial.

Talvez seja importante dar um passo para trás para compreender o que estamos falando quando ingressamos nesse mundo. Longe do mundo do seriado Jornada nas Estrelas, os filmes de Stanley Kubrick, ou Skynet, ainda não falamos de entidades artificiais criadas por humanos capazes de entender, processar, ter consciência e eventualmente atuar para assistir ou para extinguir a raça humana. Quando falamos de inteligência artificial, atualmente fazemos referência a uma série de técnicas que permitem realizar tarefas de automatização e de predição em diferentes áreas. Essas técnicas incluem o aprendizado automático em diferentes variantes, o processamento da linguagem natural e técnicas de percepção e raciocínio. Por exemplo, por trás dos chamados carros sem motorista, o que existe é uma complexa rede de sensores que permitem a um computador entender seu contexto, estabelecer uma rota ideal para chegar a um destino, executá-la, e de maneira eventual melhorar esse processo com mais dados disponíveis. Como já se sabe, será difícil para um carro sem motorista saber como, e se for necessário salvar a vida de um pedestre ou do motorista.

Dessa maneira, a inteligência artificial tem múltiplas aplicações, no setor público e no setor privado. Você quer calcular e resolver rapidamente como entregar uma pensão? Um algoritmo pode fazê-lo de uma maneira efetiva, mas também pode cometer graves erros. Uma das peculiaridades desses processos, é que, a medida que os algoritmos aprendem e evoluem, em muitos casos não é possível saber de forma confiável como acabaram por decidir entre uma coisa ou outra.

Você quer tornar eficiente um processo em uma fábrica? Um algoritmo pode executá-lo (e de fato já acontece). Mas esses processos não são universalmente aplicáveis a todas as empresas em todos os momentos. A automatização depende do setor e das capacidades que as empresas possuam. Empresas de médio e pequeno porte localizadas em países em desenvolvimento podem não ter a mesma oportunidade que seus pares no mundo desenvolvido. É conveniente esclarecer que nem todos os processos se finalizarão com o uso de robôs (uma coisa geralmente associada a essa agenda), embora, seja possível que a programação de algoritmos possa ter efeitos no mundo físico (por exemplo, ao regular uma geladeira ou a temperatura de uma casa).

Você quer saber onde tem determinada quantidade de mamíferos nos mares do mundo e acompanhar sua evolução? Utilizando a plataforma Tensorflow de Google, uma equipe de pesquisa na Austrália conseguiu desenvolver esse projeto. Mas, nem todos temos acesso a esse tipo de plataformas, nem saberíamos utilizá-las, e potencialmente poderia ter custos elevados.

Você quer encontrar uma pessoa utilizando as câmeras de uma cidade? As autoridades chinesas desenvolveram um modelo que possibilita localizar uma pessoa em uma cidade em minutos. Um modelo muito útil na busca de uma criança perdida ou de um criminoso perigoso. Mas também pressupõe a existência de um banco de dados com os rostos de todas as pessoas ao qual o governo tem acesso, com os potenciais problemas de privacidade e controle de dados que implica. E isso sem considerar outros aspectos vinculados à garantia dos direitos fundamentais das pessoas. Você quer encontrar alunos que não prestam atenção na sala de aula para melhorar seu rendimento? É fácil, com as câmeras você pode gravar seus comportamentos e identificá-los conforme suas expressões faciais.

No centro desse tipo de tecnologia, estão os dados. Todos os dados. Os dados abertos pelos governos, que permitem ser utilizados de tal maneira com que os cidadãos possam se apropriar deles. Os dados das pessoas podem ser utilizados para entender suas preferências, e prever outros dados. Por exemplo, em função do histórico de navegação e outros dados disponíveis, os sistemas automáticos podem demonstrar determinados tipos de público eleitoral. Os dados que são potencialmente compartilhados entre empresas e governos também poderiam dar uma melhor ideia da capacidade de crédito de uma pessoa (ou poderão negar esse crédito). Em resumo, quem puder ter acesso aos dados e puder combiná-los de uma maneira adequada, terá melhores dispositivos que façam as atividades já mencionadas. Nesse sentido está a importância das politicas de dados nesse campo, quais são abertos? Quais são privados? Ou quais são fechados? A qualidade desses dados é muito importante, já que aplicar algoritmos a dados tendenciosos, tem como consequência resultados insatisfatórios, que em alguns casos podem ser a origem da discriminação.

Este campo em desenvolvimento oferece múltiplos questionamentos, mas nós propomos os nossos, de acordo com o nosso lugar no mundo. A América Latina parece juntar-se um pouco mais tarde a essa onda de entusiasmo pela inteligência artificial, oferecendo oportunidades para pensar exatamente de que modo esse novo conjunto de técnicas e novas práticas tecnológicas poderia integrar-se ao contexto da região.

Primeiramente há uma pergunta de utilidade e sobre as áreas prioritárias dessas ferramentas. De que maneira, e em quais áreas a chamada inteligência artificial da mais valor aos países da região? Nem todas as áreas são tão fáceis de automatizar, tampouco existem vantagens relativas em todas elas. Também não é claro em muitos casos que a incorporação desse tipo de metodologias gera uma mudança substancial em uma atividade específica, especialmente quando se avalia com relação ao custo do desenvolvimento e aos riscos que as mesmas trazem consigo. Além disso, é bastante claro que a América Latina não possui atualmente, os recursos necessários para investir nessa área, e talvez precisamos ser seletivos. Necessitamos de metodologias que nos permitam identificar em primeira instância, quais setores devem ser priorizados, assumindo os riscos existentes.

Em segundo lugar, há uma questão de necessidade. Realmente precisamos que tudo seja automática em todas as áreas? Possivelmente não.

Em terceiro lugar, a área na qual naturalmente esse tipo de metodologias tem um potencial importante é o setor público. Nesse sentido, existem vários aspectos relevantes. Em quais áreas tem sentido incorporar essas metodologias? Não funcionará em todas as áreas, nem todas estão preparadas para avançar da mesma forma. Os dados que os governos geram, estruturam, e eventualmente abram serão fatores importantes. Por outro lado, quem serão os beneficiários desse tipo de tecnologia? Replicar antigos padrões de design de serviços sem levar em conta quem são os beneficiários, pode nos levar pelo antigo caminho de produtos caros e subutilizados desenvolvidos para os governos. Finalmente, como garantir que a incorporação dessas tecnologias respeita os princípios do devido processo, a prestação de contas e a transparência que regulam tradicionalmente aos Estados? Se os processos não são transparentes, talvez seria necessário pensar duas vezes qual tipo de tecnologia adotar. Da mesma forma, podemos também começar a pensar quantas informações realmente precisamos dos cidadãos para avançar nos programas e nas iniciativas bem-sucedidas. Queremos realmente obter até o último dado de uma pessoa?, Que tipo de garantias terá essa pessoa para controlar suas informações em uma era de decisões automáticas? O aspecto mais complexo para os Estados, tem a ver com o uso dessas tecnologias em defesa e em segurança, onde a sua adoção é preocupante em um nível comparativo.

Finalmente, os Estados na América Latina tem uma longa história de exclusão. Por um lado, há populações tradicionalmente invisíveis para os Estados, como as mulheres, a população indígena e os migrantes. Honestamente sabemos pouco desses grupos de pessoas, porque nossos bancos de dados administrativos, consideraram pouco essas populações, e de modo geral foram projetadas para outra época. Do mesmo modo, quando alguns desses setores tornaram-se visíveis foram posteriormente atacados ou discriminados. Isso implica que, para projetar novos produtos e intervenções, deveria ser uma prioridade o desenvolvimento de mecanismos inclusivos que permitam prever como os dados tendenciosos podem afetar essas populações. Essa história acaba de começar, e devido à amplitude das questões, aos setores e a discussão em geral, ainda é difícil encontrar como ordenar os passos a seguir. Construir sociedades mais inteligentes, utilizando determinados tipos de tecnologia, é certamente possível. Porém, como indica Mulgan da fundação britânica NESTA, talvez seja necessário pensar primeiro como esse tipo de desenvolvimentos responde a sistemas sociais inteligentes. O que pressupõe não assumir que a simples incorporação da inteligência artificial a processos os tornará mais inteligentes. Isso leva a discussões e a medidas mais complexas, localizadas em um determinado contexto, em vez de um mundo de slogans e filmes de ficção científica, que parece ser onde nos vemos refletidos atualmente. O que implica repensar a premissa da mera incorporação de tecnologias aos Estados e as sociedades inteligentes. À luz das evidências iniciais, um argumento bastante artificial.

ILDA como projeto considera inevitável a chegada de ferramentas e políticas públicas associadas à inteligência artificial à América Latina, o que faz necessário a abertura dos dados com a finalidade de resolver os problemas urgentes da região. Consideramos que ainda há muito por fazer em termos das políticas que orientarão a adoção das tecnologias, bem como o desenvolvimento e a identificação do valor que proporcionam a diferentes problemas sociais. É por isso, que nos próximos meses daremos início a estudos e consultas com a finalidade de entender como esse novo desenvolvimento pode se adequar aos melhores fins, no contexto latino-americano.